Sobre o emprego do hífen
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Segundo a nova ortografia, as locuções de qualquer tipo não são hifenizadas, o que, na verdade, não apresenta qualquer alteração relativamente ao texto de 1945. No entanto, quando se escreve «salvo algumas exceções consagradas pelo uso», consideramos que existe um descuido de redação, ponto que tem provocado ambiguidade e diferentes interpretações.
Compostos vs. Locuções
Há diferentes termos para designar as sequências de palavras existentes na língua que apresentam comportamentos idênticos aos de uma palavra única. A manifesta proliferação terminológica (‘locuções’, ‘expressões pluriverbais’, ‘expressões cristalizadas’, ‘frasemas’, ‘unidades multilexicais’, ‘idiomatismos’, ‘sinapsias’, ‘frases feitas’, etc.) acaba por ter implicações na leitura do texto do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), como veremos adiante, e tem conduzido a diferentes interpretações.
Independentemente da sua ortografia (isto é, se levam, ou não, hífen), reconhece-se que certas unidades possuem um elevado grau de unidade formal e semântica e, a bem da verdade, o emprego do hífen é uma simples convenção ortográfica, e não uma condição que, de facto, interfira na estrutura lexical de uma dada unidade, não tendo implicações na sua análise linguística.
No presente artigo, recorremos à distinção clássica entre ‘palavras compostas’, ou ‘compostos’, e ‘locuções’, termos, aliás, usados nas duas bases ortográficas tomadas como referência, a saber: as Bases Analíticas do Acordo Ortográfico de 1945 e o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990).
Para os casos em análise, entenda-se por composto uma palavra formada pela junção de elementos autónomos, isto é, pela associação de palavras, com ou sem elementos de ligação, cujo sentido não resulta do significado dos seus elementos, isto é, o seu sentido é conotativo (opaco, figurado, subjetivo).
Uma locução designa um grupo de palavras que funcionam, semântica e sintaticamente, como uma unidade, mas os respetivos componentes, apesar da associação que formam, conservam o seu significado, isto é, o seu significado é denotativo (sentido literal, objetivo).
Hífen
O hífen é um sinal gráfico usado para ligar os elementos de palavras compostas, para unir pronomes átonos a verbos e para fazer a translineação de palavras.
O seu emprego sempre suscitou muitas dúvidas, o que motivou os redatores do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990) a propor uma reformulação e simplificação das normas anteriores. As novas regras de escrita relativas à hifenização, em comparação com as disposições das Bases Analíticas do Acordo Ortográfico de 1945, apresentam claras vantagens no tratamento computacional do léxico. Contudo, há determinados pontos que merecem ser reequacionados.
O hífen também tem servido para fazer a distinção entre o que é um composto e uma locução, utilidade que, na nova ortografia, continua evidente em vocábulos compostos sem qualquer elemento de ligação . Por exemplo, uma mesa redonda (uma mesa que é circular) é diferente de uma mesa-redonda (reunião de pessoas especializadas que, em pé de igualdade, discutem ou deliberam sobre determinado assunto). A primeira grafia, sem hífen, geralmente designada como ‘colocação’, ‘combinatória’ ou ‘coocorrente privilegiado’, difere da segunda, com hífen, que é um verdadeiro composto por constituir uma unidade semântica individualizada.
Ora, e por que razão o mesmo não acontece entre maçã de Adão, locução usada com a significação literal de cada elemento (é mesmo a maçã de Adão), e maçã-de-adão, composto, em que o sentido da unidade não se deduz dos elementos que a formam? Apenas porque a sequência tem um elemento de ligação? Pois, quando se fala em aplicação da nova ortografia, esta é uma interpretação possível. Analisemos:
A locução hieronímica (maçã de Adão), que tem como referência o trecho bíblico em que Adão come o fruto proibido (a maçã) e o caroço fica preso na garganta, serve de base ao composto (maçã-de-adão) que designa a proeminência laríngea por alusão ao tal caroço. Nesta última sequência, que usamos como mera exemplificação de outras unidades lexicais em que ocorre o mesmo fenómeno, o seu sentido deixa de poder ser deduzido da combinação dos significados de cada uma das palavras que a compõem e adquire um significado cristalizado, de carácter metafórico e opaco. Podemos, assim, e devemos, diferenciar unidades que são transparentes, ou seja, cujo significado é literal (obtido do significado dos seus elementos), como barco à vela, bilhete de identidade, carta de condução, casa de banho, cão de guarda, carrinho de mão, direito de antena, fato de banho, ferro de engomar, marco do correio, sinal da cruz, televisão a cores, de unidades opacas, cujo significado não se consegue deduzir dos seus componentes pelo seu carácter figurado ou metafórico, como alma-do-padeiro (buracos do pão), menina-dos-olhos (pessoa preferida), pé-de-meia (economias), tinta-da-china (nanquim). Há ainda algumas unidades semitransparentes, ou seja, casos em que alguns dos elementos mantêm o seu significado literal, enquanto outros adquirem sentidos figurados, geralmente por metáfora ou metonímia, e que, ao contrário das unidades opacas, cujo sentido tem de ser apreendido, as extensões de sentido são, em muitos casos, familiares e compreensíveis, como em cara de caso, teatro de guerra, etc.
Texto de 1945 e o de 1990
No texto de 1945 está bem patente que há vocábulos ‘compostos’, como água-de-colónia, arco-da-velha, cor-de-rosa, chove-não-molha, diz-que-diz-que, mais-que-perfeito, que se diferenciam de ‘locuções substantivas’, como alma de cântaro, cabeça de motim, cão de guarda, criado de quarto, moço de recados, sala de visitas, ou ‘locuções adjetivas’, como cor de açafrão, cor de café com leite, cor de vinho. Repare-se ainda no comentário seguinte que acentua a distinção: «casos diferentes de cor-de-rosa, que não é locução, mas verdadeiro composto, por se ter tornado unidade semântica». O texto de 1990 carece desta precisão e gera um problema de interpretação.
Segundo a nova ortografia, as locuções de qualquer tipo não são hifenizadas, o que, na verdade, não apresenta qualquer alteração relativamente ao texto de 1945 . No entanto, quando se escreve ‘salvo algumas exceções consagradas pelo uso’, consideramos que existe um descuido de redação, ponto que tem provocado ambiguidade e diferentes interpretações. Recordemo-nos, em primeiro lugar, da distinção entre composto e locução atrás referida e aqui esquecida, bem patente na norma de 1945. Todos os exemplos fornecidos são ilustração de vocábulos que sofreram um processo de lexicalização e que apresentam um elevado grau de cristalização, o que os transforma em verdadeiros compostos. Os exemplos fornecidos são, na longa tradição das gramáticas, palavras classificadas como compostos nominais. Não seria por isso que são ‘exceções’? As ditas ‘exceções’ não são vocábulos de sentido conotativo ou figurado que se diferenciam das locuções cujo sentido é literal? Os exemplos apresentados no texto de 1990 possuem, de facto, todos eles um sentido subjetivo. Além do mais, o texto legal não afirma categoricamente que o hífen deva ser mantido apenas nestes exemplos.
Segundo a nossa interpretação, a série de vocábulos não é exaustiva e serve, de facto, como ilustração de uma subtileza da língua. Quando se escreve ‘como é o caso’, não será o mesmo que afirmar “como, por exemplo”? Julgamos que sim, pois como explicar que pé-de-meia (economias) deve ser escrito com hífenes, em virtude da consagração pelo uso, mas pé de galinha (ruga) não? Ou por que razão arco-da-velha mantém os hífenes, mas o mesmo pode não acontecer em arco-da-aliança ou arco-da-chuva, quando todas estas locuções significam o mesmo? Não seria desejável que as palavras que apresentam o mesmo tipo de constituintes seguissem a mesma norma? O critério da consagração pelo uso não parece constituir um princípio rigoroso para justificar as exceções às regras gerais. Acrescente-se ainda que a dificuldade que a disponibilização de uma lista de palavras podia ter oferecido por ocasião da redação do texto oficial hoje é facilmente superada pelos novos meios informáticos ao dispor dos lexicógrafos.
Sendo este um ponto controverso da reforma ortográfica, os vocabulários publicados até ao momento apresentam um diferente entendimento da matéria: a equipa brasileira conserva os hífenes nas exceções consagradas pelo uso referidas no Acordo, enquanto a equipa do VOC opta pela facultatividade, assumindo também como aceitáveis variantes sem hífen: água-de-colónia/água de Colónia; arco-da-velha/arco da velha; pé-de-meia/pé de meia [consulta em 12/12/2016]. Esta eliminação geral do hífen em locuções poderia ser encarada como um fator vantajoso, no sentido de uma mais rápida assimilação e memorização da regra, pelo que se poderia propor a eliminação das exceções acima referidas (salvo em deus-dará, queima-roupa, por serem estruturas obviamente diferentes das restantes).
Propomos, antes, seguir o critério semântico, e dada a dificuldade muitas vezes sentida em avaliar o grau de transparência de estruturas, é necessário elaborar uma lista exaustiva de unidades que se encontram nesta situação: umas, em que o emprego do hífen pode ser justificado quando o sentido do conjunto se altera relativamente ao significado dos componentes (compostos de sentido opaco), como em bota-de-elástico, fora-da-lei, pé-de-meia, e outras que dispensam o hífen, uma vez que a leitura é literal (locuções de sentido real), como em chapéu de chuva, nota de rodapé, sala de jantar.
Aproveitamos para dar conta de outro ponto problemático no que diz respeito à aplicação das novas regras de escrita e que se relaciona com a questão em análise.
A eliminação generalizada dos hífenes tem conduzido a diferentes opções na forma de grafar o último elemento quando nome próprio: se maiúscula inicial ou, pelo contrário, minúscula. Este é outro ponto que reforça a utilidade do emprego do hífen, como, por exemplo, em folha de Flandres (folha-de-flandres) ou maçã de Adão (maçã-de-adão). Ainda reforçamos: semanticamente, o seu significado não é igual ao conjunto dos significados dos seus componentes.
Por último, importa referir que quando das primeiras aplicações da nova ortografia, e porque a responsabilidade recaiu sobre os editores, o hífen havia sido mantido nestes casos. Refira-se, por exemplo, o primeiro dicionário da Porto Editora (2009) segundo a nova ortografia, ou o caso da Priberam, que, até hoje, se manteve fiel ao seu inicial entendimento de que a distinção entre compostos e locuções deveria ser conservada.
As interpretações, como vimos, são variadas, mas a necessidade do emprego do hífen tem sido sentida e há, por isso, instituições, como é o caso da INCM, que explicitamente, no seu Guia, apresenta uma lista de casos em que a hifenização é conservada em compostos consagrados pelo uso (p. 17) e em patentes militares previstas nos Estatutos dos Militares das Forças Armadas (p. 18) .
Resumindo: é nossa interpretação que os exemplos fornecidos no texto de 1990 são exemplificações e há mais casos, como há de facto, em que o hífen deverá ser mantido à luz, sobretudo, da norma anterior e das lições monumentais de Rebelo Gonçalves no seu Tratado de Ortografia .
O texto legal não impõe, ao pé da letra, a abolição generalizada do hífen. Recomenda-se seguir a tradição ortográfica e conservar o emprego do hífen em compostos de sentido autónomo e conotativo, que, por sua vez, se distinguem de locuções.
Lisboa, 13 de dezembro de 2016
Ana Salgado
Instruções.
Por motivos de clareza gráfica, o que permitirá evitar possíveis riscos de ambiguidade, o emprego do hífen é recomendado nos compostos com elementos de ligação quando os seus elementos, com a sua acentuação própria, não conservam, considerados isoladamente, a sua significação, ou seja, o sentido da unidade não se deduz a partir dos elementos que a formam.
Observação 1.ª Como as locuções não formam uma unidade de sentido conotativo, os seus elementos não devem ser unidos por hífen, seja qual for a categoria gramatical a que pertençam. Assim, escreve-se, por exemplo, cão de guarda (locução nominal), cor de açafrão (locução adjetiva), à parte, à vontade (locução adverbial), a fim de, apesar de (locução prepositiva), cada um, ele próprio (locução pronominal), ao passo que, contanto que (locução conjuncional), uma vez que essas combinações vocabulares não são verdadeiros compostos. Quando, porém, as locuções se tornam unidades fonéticas, devem ser escritas numa só palavra, acerca, afinal, apesar, debaixo, decerto, defronte, deveras, etc. Só, por conseguinte, as combinações vocabulares que formem verdadeiras unidades semânticas e sejam, ipso facto, verdadeiros compostos é que exigem, em rigor, o emprego do hífen, como é o caso de água-de-colónia, entra-e-sai, pé-de-meia.
Observação 2.ª Se numa locução existir um elemento que já tenha hífen, este será conservado: a trouxe-mouxe.
Observação 3.ª Os nomes próprios que entram na formação de locuções são grafados com maiúscula inicial, como em cabeça do Império, olho da Providência; no caso de serem compostos com hífen, passam a minúscula: folha-de-flandres, maça-de-adão.
Observação 4.ª As expressões com valor nominal, isto é, combinações vocabulares em que a soma dos elementos forma um sentido único, como faz-de-conta e maria-vai-com-as-outras, devem ser grafadas com hífen.
Observação 5.ª No interior de certos compostos, para assinalar a elisão do e da preposição de, em combinação com os nomes, emprega-se o apóstrofo: borda-d’água, cão-d’água, copo-d’água, estrela-d’alva, galinha-d’água, mãe-d’água, marca-d’água, pau-d’água, pau-d’alho, pau-d’arco, pau-d’óleo, etc.
Observação 6.ª As locuções latinas não são hifenizadas: ab initio, ab ovo, carpe diem, habeas corpus, in octavo, etc.