domingo, 29 novembro 2015
Ó vós que passais
Fernando Venâncio
Alguém disse (hoje não recordo quem, e lamento-o) que a Revolução de 1974 estava prestes a generalizar o emprego do pronome «vós», quando ela própria se findou. Ora, a ter-se ele verificado, esse encontro entre a política e a linguagem havia de provar-se, não se duvide, de fascinantes consequências.
Por detrás de tão cândido pronome, estende-se um mundo insuspeitado para aqueles de nós a quem coube o destino de não nascer minhoto ou trasmontano. Sem dúvida: ao aprendermos as conjugações (e suspeito que hoje já não se aprendem com a convicção de outrora), arquivámos na mente, entre as demais, a segunda pessoa do plural. Mas a existência de tais formas («vós falais», «vós traríeis», «escrevei vós»), a existência delas fora da gramática parecia-nos, se é que nisso pensávamos, um exagero. Até ao momento em que, com estupefacção, as descobríamos na rua. Veja-se o humilde caso pessoal.
Transitei, fizera eu dez anos, de uma escola lisboeta de bairro para o coração do Minho (expressão vagamente pleonástica, uma vez que só o Minho dispõe, ao que sei, desta dramática víscera). No estabelecimento a que me acolhi, não tardou a rodear-me, inescapável, o falar de Entre Douro e Minho. Era um linguajar cantado, e a transbordar de ditongos exóticos.
Preciso é dizer que, no domínio da linguagem, os interamnenses, além de maviosos, eram de uma pasmosa intolerância. A minha fala meridional fazia ininterruptamente as delícias de vários ironistas. Eu falava-lhes no «riu» Tejo (era agora eu quem ditongava), dizia «pôco» onde se esperava que dissesse «pôuco». Algum tempo depois, hipercorrectivo, desorientado, eu já ortografava «ele poude», como outros vão «pousar» ante o fotógrafo. Que fazer? Infelizmente nada. Eles ignoravam que o ditongo «ôu» já vinha, desde há centenas de anos, em imparável recuo de Sul para Norte, e que eu mais não era que o inocente profeta do seu colapso.
Mas nem tudo era sofrimento. As musicalíssimas formas verbais que à minha volta ouvia redimiam muita coisa. Não se pode odiar um povo que emprega «vinde», «dai», «ponde», «fazei», que diz «vós sarais» querendo dizer «vocês curam-se», que diz «se vós pinchardes» quando outros usam «se vocês saltarem», ou «se vós bulísseis» onde o resto diz «se vocês mexessem». Tantas novidades morfológicas e lexicais, mesmo que não pedissem entusiasmo, inculcavam respeito. Manifestamente, aquela gente privava dia e noite com a gramática.
Não me tornei sociolinguista, o que era uma saída imaginável para quem teve de crescer com tais traumas. Mas intuí, cedo, este postulado: o pronome «vós» constituía, para falantes do Sul, uma forma prestigiada, enquanto, naqueles confins nortenhos, o alienígena «vocês» carregava um estigma. E é aqui que entra a revolução. Escutai, pois.
Os tribunos de 1974 viram-se perante uma questão desconhecida, mas grave: como dirigirem-se às massas. Como tratá-las. Por «os senhores»? Seria uma deferência burguesa. Usar, então, «vocês»? Alguns o fizeram. Era cómodo, era sobretudo descontraído. Mas, com a radicalização política, o prestígio das massas acentuou-se. Não se trata um povo de qualquer maneira. O povo, sim, o Povo não é «vocês».
Assim se ia dar início à inversão do processo que vinha entrincheirando o «vós» no reduto norte. Nas asas de maciças transmissões televisivas, o pronome aprestava-se para a nova reconquista... Sabe-se hoje que não a levou longe.
Perdeu assim a linguística um laboratório a muitos títulos insólito. Seria uma situação única, a de milhões de pessoas a aprenderem essas velhas formas, de uma penetrante sonoridade, decerto, mas assombrosamente complexas para quem tinha que dominá-las na idade adulta. Uma parte do Português iria agora ser aprendida, pelos próprios portugueses, como uma ‘segunda língua’.
O mais provável é que, a meio dessa aprendizagem, viessem a desenvolver-se, transitórias ou duradoiras, algumas soluções híbridas. Nelas, coexistiriam dois sistemas (o antigo estado de coisas e o novo) no interior duma mesma frase.
Tal situação é menos estranha do que pode parecer. Um brasileiro dirá, por exemplo: «Você não tem isso? Então eu te dou». E nós não fazemos outra coisa ao dizermos: «Podem pôr aqui o vosso carro». Verifica-se, por vezes, já não um hibridismo, mas uma simples justaposição de sistemas. Assim, lemos em «Convida-me só para jantar» de Ana Goês: «Não pensem que vos ponho nus / isso era o que vocês queriam / meus «playboys» / (...) mas em cuecas e em meias / meus pobres senhores / não passais de mesquinhos seres humanos / que tendes úlceras / e arrotais». E um poeta do Norte, António Rua, escreve em «Prazeres proibidos»: «Por favor, sede belos / não me esperem à hora certa».
Mas não se ficaria por aí. É mais que provável que, nesta larga proveta nacional, surgissem mais ou menos inesperadas formas de vida. Algumas delas surpresa pura, outras predizíveis. Com efeito, no clássico Norte do país, é possível detectarem-se, amiúde, contaminações do género de «vós sendes» (compare-se «vós tendes») por «vós sois», ou casos de hipercorrecção, como «ouvide» ou «vós fizésteis». Mesmo as eventuais formações peregrinas, não era necessário inventá-las. Bastava-nos extrapolar. No Expresso de 10 de Março de 1990, punha Nuno Brederode Santos um papa discutindo com o seu ministro dos Estrangeiros, a quem dizia: «Pois creis vós, Casaroli, que um alucinado possa chegar a primeiro-ministro?» E a 14 de Julho, no mesmo jornal, é toda a episcopalidade portuguesa que reúne. O ‘Correio-Mor’ cita um dos prelados: «Não vos esqueceis que somos os únicos detentores do segredo da poção que nos dá uma força sobre-humana...». Trata-se de contextos jocosos, ligeiros? Decerto. Mas isso não diminui, num caso e no outro, a exemplaridade.
Seria este, com toda a certeza, o panorama que nos esperava. Pela primeira vez em vários séculos, os nortenhos influiriam na norma do português, que Lisboa tem vindo a ditar. E, a Sul do Douro, as multidões pediriam uma telescola que as ensinasse a falar com segurança.
Se o leitor não acredita no cenário aqui traçado, faça o teste simples que aqui lhe proponho. É necessário que identifique (tem 5 segundos) os verbos a que pertencem as formas seguintes: «vades», «ide», «fordes», «íeis».
Conseguiu? Felicito-o. Você sobreviveria a qualquer espécie de caos.
Jornal de Letras, 4-12-1990
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